quinta-feira, 8 de março de 2012

Discurso de Bento na Lectio divina com os párocos de Roma no início da Quaresma - 23-02-2012

ENCONTRO DO PAPA BENTO XVI 

COM O CLERO DA DIOCESE DE ROMA 

NO INÍCIO DA QUARESMA

LECTIO DIVINA
Sala Paulo VI

Quinta-feira, 23 de Fevereiro de 2012


Queridos irmãos!
É para mim uma grande alegria ver todos os anos, no início da Quaresma, o meu clero, o clero de Roma, e é agradável ver como somos hoje numerosos. Pensava que nesta grande sala teríamos sido um grupo disperso, mas vejo que somos um forte exército de Deus e podemos entrar com vigor neste nosso tempo, nas batalhas necessárias para promover, para fazer com que o Reino de Deus vá em frente. Entramos ontem pela porta da Quaresma, renovamento anual do nosso Baptismo; repetimos quase o nosso catecumenado, indo de novo à profundidade do nosso ser baptizados, retomando, voltando ao nosso ser baptizados e assim incorporados em Cristo. Deste modo, podemos também procurar guiar as nossas comunidades de novo nesta comunhão íntima com a morte e ressurreição de Cristo, tornar-nos cada vez mais conformes com Cristo, tornar-nos cada vez mais realmente cristãos.

sábado, 3 de março de 2012

Angelus I Domingo da Quaresma - 26-02-2012

PAPA BENTO XVI

ANGELUS

Praça de S. Pedro
Domingo, 26 de fevereiro de 2012


Queridos irmãos e irmãs!


Neste primeiro domingo da Quaresma, encontramos Jesus que, depois de ter recebido o batismo no rio Jordão por João Batista (cf. Mc 1,9), é tentado no deserto (cf. Mc 1:12-13). A narração de São Marcos é concisa, desprovida de detalhes que lemos nos outros dois Evangelhos de Mateus e de Lucas. O deserto do qual se fala tem diversos significados. Pode indicar o estado de abandono e solidão, o "lugar" da fraqueza do homem, onde não há apoios e seguranças, onde a tentação se faz mais forte. Mas também pode indicar um lugar de refúgio e abrigo, como foi para o povo de Israel na fuga da escravidão egípcia, onde  é possível experimentar, de maneira particular, a presença de Deus. Jesus "esteve no deserto quarenta dias, tentado por satanás" (Mc 1,13). São Leão Magno diz que "o Senhor quis sofrer o ataque do tentador para defender com a sua ajuda e para ensinar com o seu exemplo" (Tractatus XXXIX, 3 De ieiunio quadragesimae: CCL 138 / A Turnholti, 1973, 214-215) .



O que pode nos ensinar esse episódio? Como lemos no livro da Imitação de Cristo, “o homem nunca é totalmente livre da tentação, enquanto viver ... Mas é com paciência e verdadeira humildade, se tornará mais fortes do que qualquer inimigo" (Liber I, c. XIII , Cidade do Vaticano 1982, 37), a paciência e a humildade de seguir o Senhor todos os dias, aprendendo a construir a nossa vida não fora dele como se não existisse, mas Nele e com Ele, porque é a fonte da verdadeira vida. A tentação de remover Deus, de colocar ordem sozinho em nós mesmos e no mundo contando apenas com as próprias habilidades, está sempre presente na história humana.



Jesus proclama que "o tempo está cumprido, e é chegado o reino de Deus" (Mc 1,15), anuncia que Nele acontece algo novo: Deus se fez homem, de uma forma inesperada, com uma proximidade única e concreta, plena de amor;  Deus se encarna e entra no mundo como homem para tomar sobre si o pecado, para vencer o mal e reconduzir o homem ao mundo de Deus. Mas este anúncio é acompanhado pela exigência de corresponder a esse dom tão grande. Jesus, de fato, acrescenta: "convertei-vos e crede no evangelho" (Mc 1,15); é um convite a ter fé em Deus e a converter todos os dias nossas vidas a Sua vontade, orientando, para o bem, todas as nossas ações e pensamentos.O tempo da Quaresma é um tempo propício para renovar e melhorar o equilíbrio do nosso relacionamento com Deus, através da oração cotidiana, dos atos de penitência,  e das obras de caridade fraterna.



Supliquemos com fervor Maria Santíssima para que acompanhe o nosso caminho quaresmal com sua proteção e ajude-nos a imprimir em nosso coração e em nossa vida as palavras de Jesus Cristo, para convertermos a Ele. Confio, por fim,  as vossas orações pela semana de Exercícios Espirituais que nesta noite iniciarei junto aos meus Colaboradores da Cúria Romana.


(Tradução:MEM)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Homilia de Bento XVI na Missa da Quarta-feira de Cinzas, 22 de fevereiro de 2012




ESTAÇÃO E PROCISSÃO PENITENCIAL
DESDE A IGREJA DE SANTO ANSELMO
ATÉ A BASÍLICA DE SANTA SABINA NO AVENTINO

SANTA MISSA, BÊNÇÃO E IMPOSIÇÃO DAS CINZAS

Basílica de Santa Sabina
Quarta-feira de Cinzas, 22 de fevereiro de 2012


Venerados Irmãos,
Caros irmãos e irmãs!

Com este dia de penitência e de jejum – a Quarta-feira de Cinzas – iniciamos um novo caminho rumo à Páscoa da Ressurreição: o caminho da Quaresma. Gostaria de me deter brevemente a refletir sobre o sinal litúrgico das cinzas, um sinal material, um elemento da natureza, que na Liturgia se torna um símbolo sagrado, muito importante neste dia que dá início ao itinerário quaresmal. Antigamente, na cultura judaica, era comum o uso de colocar cinzas na cabeça como sinal de penitência, gesto comumente acompanhado do vestir-se com saco ou com farrapos. Para nós cristãos, ao invés, existe este momento único, que tem, ademais, uma notável relevância ritual e espiritual.

Em primeiro lugar, a cinza é um daqueles sinais materiais que levam o cosmo para dentro da Liturgia. Os sinais materiais principais são, evidentemente, os dos Sacramentos: a água, o óleo, o pão e o vinho, que se tornam verdadeira matéria sacramental, instrumento mediante o qual se comunica a graça de Cristo que nos alcança. No caso da cinza trata-se, ao invés, de um sinal não sacramental, mas, mesmo assim, ligado à oração e à santificação do Povo cristão: de fato, é prevista, antes da imposição sobre a cabeça, uma bênção específica das cinzas – que faremos daqui a pouco –, com duas fórmulas possíveis. Na primeira elas são definidas <<símbolo austero>>; na segunda se invoca diretamente sobre elas a bênção e se faz referência ao texto do Livro do Gênesis, que pode inclusive acompanhar o gesto da imposição: <<Recorda-te que és pó, e em pó te hás de tornar>> (Gen 3,19).

Detenhamo-nos por um momento sobre essa passagem do Gênesis. Ela conclui o juízo pronunciado por Deus após o pecado original: Deus amaldiçoa a serpente, que fez cair no pecado o homem e a mulher; depois pune a mulher anunciando-lhe as dores do parto e uma relação desigual com o marido; por fim, pune o homem, anuncia-lhe a fadiga no trabalhar e amaldiçoa o solo. <<A terra será maldita por tua causa>> (Gen 3,17), por causa do teu pecado. Portanto, o homem e a mulher não são amaldiçoados diretamente como o é, ao invés, a serpente, mas, por causa do pecado de Adão, é amaldiçoada a terra, da qual ele havia sido extraído. Relemos a magnífica narração da criação do homem feito da terra: <<O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe no rosto um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente. Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, do lado do oriente, e colocou nele o homem que havia criado>> (Gen 2,7-8).

Eis, portanto, que o sinal da cinza nos reconduz ao grande afresco da criação, em que se diz que o ser humano é uma singular unidade de matéria e de sopro divino, mediante a imagem do pó da terra plasmada por Deus e animada por seu sopro insuflado nas narinas da nova criatura. Podemos observar como na narração do Gênesis o símbolo do pó sofre uma transformação negativa por causa do pecado. Enquanto antes da queda a terra é uma potencialidade totalmente boa, irrigada por um vapor de água (Gen 2,6) e capaz, pela obra de Deus, de germinar <<toda sorte de árvores, de aspecto agradável, e de frutos doces para comer>> (Gen 2,9), após a queda e a consequente maldição divina ela produzirá <<espinhos e abrolhos>> e somente com <<trabalhos penosos>> e <<com o suor do teu rosto>> concederá ao homem os seus frutos (cfr Gen 3,17-18). O pó da terra não mais evoca o gesto criador de Deus, totalmente aberto à vida, mas se torna sinal de um inexorável destino de morte: <<És pó, e em pó te hás de tornar>> (Gen 3,19).

É evidente no texto bíblico que a terra participa da sorte do homem. A propósito, diz São João Crisóstomo numa sua homilia: <<Vê como após a sua desobediência tudo é colocado sobre ele (o homem) num modo contrário a seu estilo de vida precedente>> (Homilias sobre o Gênesis 17, 9: PG 53, 146). Essa maldição do solo tem uma função medicinal para o homem, que das "resistências" da terra deveria ser ajudado a ater-se em seus limites e reconhecer a própria natureza (cfr ibid.). Assim, com uma bela síntese, se expressa outro antigo comentário: <<Adão foi criado puro por Deus para o seu serviço. Todas as criaturas lhe foram concedidas para servi-lo. Ele era destinado a ser o senhor e rei de todas as criaturas. Mas quando o mal o alcançou e conversou com ele, ele o recebeu por meio de uma escuta externa. Depois penetrou em seu coração e tomou posse de seu inteiro ser. Quando assim foi capturado, a criação, que o havia assistido e servido, foi capturada com ele>> (Pseudo-Macário, Homilias 11,5: PG 34, 547)

Dizíamos pouco antes, citando Crisóstomo, que a maldição do solo tem uma função "medicinal". Isso significa que a intenção de Deus, que é sempre benéfica, é mais profunda do que a sua própria maldição. De fato, ela se deve ao pecado e não a Deus, porém Deus não pode deixar de infligi-la, porque respeita a liberdade do homem e as suas consequências, mesmo negativas. Portanto, dentro da punição, e também dentro da maldição do solo, permanece uma intenção boa que vem de Deus. Quando Ele diz ao homem: "Tu és pó e pó voltarás a ser!", junto com a justa punição pretende também anunciar um caminho de salvação, que passará justamente mediante a terra, mediante aquele "pó", aquela "carne" que será assumida pelo Verbo. É nessa perspectiva salvífica que a palavra do Gênesis é retomada pela Liturgia da Quarta-feira de cinzas: como convite à penitência, à humildade, a dar-se conta da própria condição mortal, mas não para cair no desespero, mas para acolher, justamente nessa nossa mortalidade, a impensável proximidade de Deus, que, para além da morte, abre a passagem para a ressurreição, para o paraíso finalmente reencontrado. Nesse sentido orienta-nos um texto de Orígenes, que diz: <<Aquilo que inicialmente era carne, da terra, um homem de pó (cfr 1 Cor 15,47), e foi dissolvido através da morte e novamente se tornado pó e cinzas – de fato está escrito: és pó e pó voltarás a ser – ressurge novamente da terra. Em seguida, segundo os méritos da alma que habita o corpo, a pessoa avança rumo à glória de um corpo espiritual>> (Sobre os Princípios 3, 6, 5: Sch, 268, 248).

Os <<méritos da alma>>, de que fala Orígenes, são necessários; mas fundamentais são os méritos de Cristo, a eficácia do seu Mistério pascal. São Paulo ofereceu-nos uma formulação sintética na segunda Leitura: <<Aquele que não havia conhecido pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nós nele nos tornássemos justiça de Deus>> (2 Cor 5,21). A possibilidade para nós do perdão divino depende essencialmente do fato que Deus mesmo, na pessoa de seu Filho, quis partilhar a nossa condição, mas não a corrupção do pecado. E o Pai o ressuscitou com o poder do seu Espírito Santo e Jesus, o novo Adão, tornou-se <<espírito vivificante>> (1 Cor 15,45), as primícias da nova criação. O mesmo Espírito que ressuscitou Jesus dos mortos pode transformar os nossos corações de pedra em corações de carne (cfr Ez 36,26). E o invocamos há pouco com o Salmo Miserere: <<Criai em mim um coração puro, renovai-me o espírito de firmeza. De vossa presença não me rejeiteis e nem me priveis de vosso santo espírito>> (Sal 50,12-13). Aquele Deus que saciou os progenitores do Éden, mandou o seu Filho à nossa terra devastada pelo pecado, não o poupou, a fim de que nós, filhos pródigos, possamos retornar, arrependidos e redimidos pela sua misericórdia, à nossa verdadeira pátria. Assim seja, para cada um de nós, para todos os fiéis, para todo homem que humildemente se reconhece necessitado de salvação. Amém.

Fonte: http://noticias.cancaonova.com/noticia.php?id=285339

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Mensagem do Papa sobre a Campanha da Fraternidade 2012


MENSAGEM DO PAPA BENTO XVI
AO PRESIDENTE DA CONFERÊNCIA
DOS BISPOS DO BRASIL POR OCASIÃO
DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE DE 2012


Ao Venerado Irmão 
Cardeal Raymundo Damasceno Assis
Arcebispo de Aparecida (SP) e Presidente da CNBB

Fraternas saudações em Cristo Senhor!
De bom grado me associo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que lança uma nova Campanha da Fraternidade, sob o lema «que a saúde se difunda sobre a terra» (cf. Eclo 38, 8), com o objetivo de suscitar, a partir de uma reflexão sobre a realidade da saúde no Brasil, um maior espírito fraterno e comunitário na atenção dos enfermos e levar a sociedade a garantir a mais pessoas o direito de ter acesso aos meios necessários para uma vida saudável.
Para os cristãos, de modo particular, o lema bíblico é uma lembrança de que a saúde vai muito além de um simples bem estar corporal. No episódio da cura de um paralítico (cf. Mt 9, 2-8), Jesus, antes de fazer com que esse voltasse a andar, perdoa-lhe os pecados, ensinando que a cura perfeita é o perdão dos pecados, e a saúde por excelência é a da alma, pois «que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua alma?» (Mt 16, 26). Com efeito, as palavras saúde e salvação têm origem no mesmo termo latino salus e não por outra razão, nos Evangelhos, vemos a ação do Salvador da humanidade associada a diversas curas: «Jesus andava por toda a Galiléia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todo o tipo de doença e enfermidades do povo» (Mt 4, 23).
Com o seu exemplo diante dos olhos, segundo o verdadeiro espírito quaresmal, possa esta Campanha inspirar no coração dos fiéis e das pessoas de boa vontade uma solidariedade cada vez mais profunda para com os enfermos, tantas vezes sofrendo mais pela solidão e abandono do que pela doença, lembrando que o próprio Jesus quis Se identificar com eles: «pois Eu estava doente e cuidastes de Mim» (Mt 25, 36). Ajudando-lhes ao mesmo tempo a descobrir que se, por um lado, a doença é prova dolorosa, por outro, pode ser, na união com Cristo crucificado e ressuscitado, uma participação no mistério do sofrimento d’Ele para a salvação do mundo. Pois, «oferecendo o nosso sofrimento a Deus por meio de Cristo, nós podemos colaborar na vitória do bem sobre o mal, porque Deus torna fecunda a nossa oferta, o nosso ato de amor» (Bento XVI, Discurso aos enfermos de Turim, 2 de maio de 2010).
Associando-me, pois, a esta iniciativa da CNBB e fazendo minhas as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de cada um, saúdo fraternalmente quantos tomam parte, física ou espiritualmente, na Campanha «Fraternidade e Saúde Pública», invocando ­ pela intercessão de Nossa Senhora Aparecida ­ para todos, mas de modo especial para os doentes, o conforto e a fortaleza de Deus no cumprimento do dever de estado, individual, familiar e social, fonte de saúde e progresso do Brasil tornando-se fértil na santidade, próspero na economia, justo na participação das riquezas, alegre no serviço público, equânime no poder e fraterno no desenvolvimento. E, para confirmar a todos estes bons propósitos, envio uma propiciadora Bênção Apostólica.
Vaticano, 11 de fevereiro de 2012.

PAPA BENTO XVI

Fonte:http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/messages/pont-messages/2012/documents/ hf_ben-xvi_mes_20120211_fraternita-2012_po.html

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Audiência geral - 22-02-2012 - Quarta-feira de Cinzas

AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012


Quarta-feira de Cinzas

Caros irmãos e irmãs,
Nesta Catequese gostaria de falar brevemente sobre o tempo da Quaresma que começa hoje com a liturgia da Quarta-feira de Cinzas. Trata-se de um itinerário de quarenta dias que nos conduzirá ao Tríduo Pascal, memória da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor, o coração do mistério da nossa salvação. Nos primeiros séculos de vida da Igreja este era o tempo em que aqueles que haviam escutado e acolhido o anúncio de Cristo iniciavam, paulatinamente, seu caminho de fé e de conversão para chegar a receber o sacramento do Batismo. Tratava-se de um aproximar-se do Deus vivo e de uma iniciação à fé a realizar-se gradualmente, mediante uma mudança interior por parte dos catecúmenos, isto é, de quantos desejavam tornar-se cristãos e ser incorporados a Cristo e à Igreja.
Depois, também os penitentes e todos os fiéis foram convidados a viver este itinerário de renovação espiritual para conformar sempre mais a própria existência à de Cristo. A participação de toda a comunidade nos diversos passos do percurso quaresmal sublinha uma dimensão importante da espiritualidade cristã: é a redenção não de alguns, mas de todos, que está disponível graças à morte e ressurreição de Cristo. Portanto, tanto aqueles que percorreram um caminho de fé como catecúmenos para receber o Batismo, quanto aqueles que se afastaram de Deus e da comunidade de fé e buscavam a reconciliação, quanto ainda os que viveram a fé em plena comunhão com a Igreja, todos juntos sabiam que o tempo que precede a Páscoa é um tempo de metanoia, isto é, de mudança interior, de arrependimento; o tempo que identifica nossa vida humana e toda a nossa história como um processo de conversão que se põe em movimento agora para encontrar o Senhor no fim dos tempos.
Com uma expressão tornada típica na liturgia, a Igreja denomina o período no qual entramos hoje de “Quadragesima”, ou seja, um tempo de quarenta dias que, com uma clara referência à Sagrada Escritura, nos introduz assim num preciso contexto espiritual. De fato, quarenta é o número simbólico com o qual o Antigo e o Novo Testamento representam os momentos importantes da experiência de fé do Povo de Deus. É um número que exprime o tempo da espera, da purificação, do retorno ao Senhor, da consciência de que Deus é fiel às suas promessas. Este número não representa um tempo cronológico exato, marcado pela soma de dias. Indica, antes, uma paciente perseverança, uma longa prova, um período suficiente para ver as obras de Deus, um tempo dentro do qual é necessário decidir-se a assumir a própria responsabilidade sem outras desculpas. É tempo das decisões maduras.
O número quarenta aparece primeiramente na história de Noé. Este homem justo, por causa do dilúvio, permanece por quarenta dias e quarenta noites dentro da arca, junto com sua família e os animais que Deus lhe havia dito para trazer consigo. Ele aguarda outros quarenta dias, depois do dilúvio, antes de tocar a terra firme, salva da destruição (cf. Gn 7,4.12; 8,6). Depois, a próxima etapa: Moisés permanece sobre o Monte Sinai, na presença do Senhor, quarenta dias e quarenta noites para receber a Lei. Durante este tempo, ele jejua (Cf. Ex 24,18). Quarenta são os anos de viagem dos hebreus do Egito à Terra prometida, tempo adequado para experimentar a fidelidade de Deus. “Recordai de todos os caminhos que o Senhor, teu Deus, te fez percorrer nestes quarenta anos... A veste que usavas não se envelheceu nem teus pés incharam durante estes quarenta anos”, diz Moisés no Deuteronômio ao fim destes quarenta anos de migração (Dt 8,2.4). Os anos de paz de que Israel desfruta sob os Juízes são quarenta (Cf. Jz 3,11.30), mas transcorrido este tempo, inicia-se o esquecimento dos dons de Deus e o retorno ao pecado. O profeta Elias gasta quarenta dias para alcançar o Horeb, o monte onde encontra Deus (Cf. 1Re 19,8). Quarenta são os dias nos quais os cidadãos de Nínive fazem penitência para obter o perdão de Deus (Cf. Jn 3,4). Quarenta são também os anos do reinado de Saul (cf. At 13,21), de Davi (cf. 2Sm 5,4-5) e de Salomão (cf. 1Re 11,42), os três primeiros reis de Israel. Também os Salmos refletem sobre o significado bíblico dos quarenta anos, como por exemplo o Salmo 95(94), do qual temos ouvido a passagem: “Se escutasses hoje a sua voz: ‘Não endureçais o coração como em Meriba, como no dia de Massa, no deserto, onde me tentaram os vossos pais: puseram-me à prova, apesar de terem visto as minhas obras. Por quarenta anos me desgostou aquela geração e eu disse: são um povo de coração extraviado, não conheceram os meus caminhos’” (v. 7c-10).
No Novo Testamento, Jesus, antes de iniciar a sua vida pública, retira-se no deserto por quarenta dias, sem comer nem beber (cf. Mt 4,2): ele se nutre da Palavra de Deus, que usa como arma para vencer o diabo. As tentações de Jesus recordam as que os hebreus enfrentaram no deserto, mas que não foram capazes de vencer. Quarenta são os dias durante os quais Jesus ressuscitado instruiu os seus antes de subir ao Céu e enviar o Espírito Santo (cf. At 1,3).
Com este recorrente número de quarenta é descrito um contexto espiritual que permanece atual e válido, e a Igreja, mediante os dias do período quaresmal, pretende manter seu valor constante e trazer para nós a sua eficácia. A liturgia cristã da Quaresma tem o objetivo de favorecer um caminho de renovação espiritual à luz desta longa experiência bíblica e, sobretudo, para aprender a imitar Jesus que, nos quarenta dias transcorridos no deserto, ensinou a vencer a tentação com a Palavra de Deus. Os quarenta anos da peregrinação de Israel no deserto apresentam atitudes e situações ambivalentes. Por um lado, esse é o período do primeiro amor com Deus e entre Deus e seu povo, quando Ele falava ao seu coração, indicando-lhe continuamente o caminho a percorrer. Deus havia tomado, por assim dizer, morada em meio a Israel, o precedia em uma nuvem ou coluna de fogo, providenciava cada dia o seu sustento, fazendo cair o maná e fazendo jorrar água da rocha. Portanto, os anos vividos por Israel no deserto podem ser vistos como o tempo da especial eleição de Deus e da adesão a Ele por parte do povo: tempo do primeiro amor. Por outro lado, a Bíblia mostra também uma outra imagem da peregrinação de Israel no deserto: é também o tempo das tentações e dos maiores perigos, quando Israel murmura contra o seu Deus e queria voltar ao paganismo e construir os próprio ídolos, porque atende a exigência de venerar um Deus mais próximo e palpável. É ainda o tempo da rebelião contra o Deus grande e invisível.
Esta ambivalência, tempo da especial proximidade de Deus – tempo do primeiro amor –, e tempo da tentação – tentação do retorno ao paganismo –, a encontramos de modo surpreendente no caminho terreno de Jesus, naturalmente sem qualquer compromisso com o pecado. Depois do batismo de penitência no Jordão, no qual assume sobre si o destino do Servo de Deus que renuncia a si mesmo e vive pelos outros e se coloca entre os pecadores para tomar sobre si o pecado do mundo, Jesus foi para o deserto para ficar quarenta dias em profunda união com o Pai, repetindo assim a história de Israel, todos aqueles ritmos de quarenta dias ou anos a que acenei. Esta dinâmica é uma constante na vida terrena de Jesus, que procura sempre momentos de solidão para orar ao seu Pai e permanecer em íntima comunhão, em íntima solidão com Ele, em exclusiva comunhão com Ele, e depois retornar para o meio do povo. Mas, neste tempo de “deserto” e de encontro especial com o Pai, Jesus se encontra exposto ao perigo e é assaltado pela tentação e pela sedução do Maligno, o qual lhe propõe um outro caminho messiânico, longe do projeto de Deus, porque passa pelo poder, pelo sucesso, pelo domínio e não pelo dom total sobre a Cruz. Esta é a alternativa: um messianismo de poder, de sucesso, ou um messianismo de amor, de dom de si.
Esta situação de ambivalência descreve ainda a condição da Igreja em caminho no “deserto” do mundo e da história. Neste “deserto”, nós os crentes temos certamente a oportunidade de fazer uma profunda experiência de Deus que torna forte o espírito, confirma a fé, nutre a esperança, anima a caridade; uma experiência que nos faz participar da vitória de Cristo sobre o pecado e a morte mediante o Sacrifício de amor sobre a Cruz. Mas o “deserto” é também o aspecto negativo da realidade que nos circunda: a aridez, a pobreza de palavras de vida e de valores, o secularismo e a cultura materialista, que fecha a pessoa no horizonte mundano de existir subtraindo todas as referências à transcendência. É este também o ambiente em que o céu acima de nós é obscuro, porque coberto pelas nuvens do egoísmo, da incompreensão e do engano. Não obstante, também para a Igreja de hoje o tempo de deserto pode transformar-se em tempo de graça, porque temos a certeza que também da rocha mais dura Deus pode fazer brotar a água viva que sacia a sede e restaura.
Caros irmãos e irmãs, nestes quarenta dias que nos conduzirão à Páscoa da Ressurreição, possamos encontrar novo ânimo para aceitar com paciência e fé cada situação de dificuldade, de aflição e de prova, na consciência que, das trevas, o Senhor fará surgir o novo dia. E se tivermos sido fieis a Jesus, seguindo-o no caminho da Cruz, o claro mundo de Deus, o mundo da luz, da verdade e da alegria nos será como que devolvido: será a nova aurora criada por Deus mesmo. Um bom caminho quaresmal para todos vós!

(Tradução minha)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Papa relembra a origem da humanidade na Quarta-feira de Cinzas



Bento XVI celebrou a Quarta-feira de Cinzas na Basílica de Santa Sabina, localizada na colina do Aventino em Roma. Ele recebeu a cruz de cinzas do Cardeal Josef Tomko da Eslováquia, que é cardeal titular daquela igreja.
Durante a celebração, o papa falou sobre a importância das cinzas.

Bento XVI: As cinzas são um daqueles materiais que trazem o cosmos para dentro da liturgia.

A Quarta-feira de Cinzas também serve como oportunidade de lembrar a todos que são seres humanos mortais, dizendo que viemos da terra e é para onde uma dia retornaremos.

Bento XVI: O pó da terra não relembra apenas o ato criador de Deus, todo aberto à vida, mas torna-se sinal de um inexorável destino de morte: “Tu és pó e ao pó retornarás”.

A subida à colina do Aventino representa a luta dos católicos pela santidade. A tradição foi revivida em 1979 por João Paulo II, seguindo os passos de seus predecessores na Sé de Pedro.

Rome Reports

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Mensagem de Sua Santidade Papa Bento XVI para a Quaresma de 2012


MENSAGEM DE SUA SANTIDADE 
PAPA BENTO XVI 
PARA A QUARESMA DE 2012

«Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos
ao amor e às boas obras» (Heb 10, 24)


Irmãos e irmãs!
A Quaresma oferece-nos a oportunidade de reflectir mais uma vez sobre o cerne da vida cristã: o amor. Com efeito este é um tempo propício para renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e a partilha, pelo silêncio e o jejum, com a esperança de viver a alegria pascal.
Desejo, este ano, propor alguns pensamentos inspirados num breve texto bíblico tirado da Carta aos Hebreus: «Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras» (10, 24). Esta frase aparece inserida numa passagem onde o escritor sagrado exorta a ter confiança em Jesus Cristo como Sumo Sacerdote, que nos obteve o perdão e o acesso a Deus. O fruto do acolhimento de Cristo é uma vida edificada segundo as três virtudes teologais: trata-se de nos aproximarmos do Senhor «com um coração sincero, com a plena segurança da » (v. 22), de conservarmos firmemente «a profissão da nossa esperança» (v. 23), numa solicitude constante por praticar, juntamente com os irmãos, «o amor e as boas obras» (v. 24). Na passagem em questão afirma-se também que é importante, para apoiar esta conduta evangélica, participar nos encontros litúrgicos e na oração da comunidade, com os olhos fixos na meta escatológica: a plena comunhão em Deus (v. 25). Detenho-me no versículo 24, que, em poucas palavras, oferece um ensinamento precioso e sempre actual sobre três aspectos da vida cristã: prestar atenção ao outro, a reciprocidade e a santidade pessoal.
1. «Prestemos atenção»: a responsabilidade pelo irmão.
O primeiro elemento é o convite a «prestar atenção»: o verbo grego usado é katanoein, que significa observar bem, estar atento, olhar conscienciosamente, dar-se conta de uma realidade. Encontramo-lo no Evangelho, quando Jesus convida os discípulos a «observar» as aves do céu, que não se preocupam com o alimento e todavia são objecto de solícita e cuidadosa Providência divina (cf. Lc 12, 24), e a «dar-se conta» da trave que têm na própria vista antes de reparar no argueiro que está na vista do irmão (cf. Lc 6, 41). Encontramos o referido verbo também noutro trecho da mesma Carta aos Hebreus, quando convida a «considerar Jesus» (3, 1) como o Apóstolo e o Sumo Sacerdote da nossa fé. Por conseguinte o verbo, que aparece na abertura da nossa exortação, convida a fixar o olhar no outro, a começar por Jesus, e a estar atentos uns aos outros, a não se mostrar alheio e indiferente ao destino dos irmãos. Mas, com frequência, prevalece a atitude contrária: a indiferença, o desinteresse, que nascem do egoísmo, mascarado por uma aparência de respeito pela «esfera privada». Também hoje ressoa, com vigor, a voz do Senhor que chama cada um de nós a cuidar do outro. Também hoje Deus nos pede para sermos o «guarda» dos nossos irmãos (cf. Gn 4, 9), para estabelecermos relações caracterizadas por recíproca solicitude, pela atenção ao bem do outro e a todo o seu bem. O grande mandamento do amor ao próximo exige e incita a consciência a sentir-se responsável por quem, como eu, é criatura e filho de Deus: o facto de sermos irmãos em humanidade e, em muitos casos, também na fé deve levar-nos a ver no outro um verdadeiro alter ego, infinitamente amado pelo Senhor. Se cultivarmos este olhar de fraternidade, brotarão naturalmente do nosso coração a solidariedade, a justiça, bem como a misericórdia e a compaixão. O Servo de Deus Paulo VI afirmava que o mundo actual sofre sobretudo de falta de fraternidade: «O mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de fraternidade entre os homens e entre os povos, do que na esterilização ou no monopólio, que alguns fazem, dos recursos do universo» (Carta enc. Populorum progressio, 66).
A atenção ao outro inclui que se deseje, para ele ou para ela, o bem sob todos os seus aspectos: físico, moral e espiritual. Parece que a cultura contemporânea perdeu o sentido do bem e do mal, sendo necessário reafirmar com vigor que o bem existe e vence, porque Deus é «bom e faz o bem» (Sal 119/118, 68). O bem é aquilo que suscita, protege e promove a vida, a fraternidade e a comunhão. Assim a responsabilidade pelo próximo significa querer e favorecer o bem do outro, desejando que também ele se abra à lógica do bem; interessar-se pelo irmão quer dizer abrir os olhos às suas necessidades. A Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração endurecido por uma espécie de «anestesia espiritual», que nos torna cegos aos sofrimentos alheios. O evangelista Lucas narra duas parábolas de Jesus, nas quais são indicados dois exemplos desta situação que se pode criar no coração do homem. Na parábola do bom Samaritano, o sacerdote e o levita, com indiferença, «passam ao largo» do homem assaltado e espancado pelos salteadores (cf. Lc 10, 30-32), e, na do rico avarento, um homem saciado de bens não se dá conta da condição do pobre Lázaro que morre de fome à sua porta (cf. Lc 16, 19). Em ambos os casos, deparamo-nos com o contrário de «prestar atenção», de olhar com amor e compaixão. O que é que impede este olhar feito de humanidade e de carinho pelo irmão? Com frequência, é a riqueza material e a saciedade, mas pode ser também o antepor a tudo os nossos interesses e preocupações próprias. Sempre devemos ser capazes de «ter misericórdia» por quem sofre; o nosso coração nunca deve estar tão absorvido pelas nossas coisas e problemas que fique surdo ao brado do pobre. Diversamente, a humildade de coração e a experiência pessoal do sofrimento podem, precisamente, revelar-se fonte de um despertar interior para a compaixão e a empatia: «O justo conhece a causa dos pobres, porém o ímpio não o compreende» (Prov 29, 7). Deste modo entende-se a bem-aventurança «dos que choram» (Mt 5, 4), isto é, de quantos são capazes de sair de si mesmos porque se comoveram com o sofrimento alheio. O encontro com o outro e a abertura do coração às suas necessidades são ocasião de salvação e de bem-aventurança.
O facto de «prestar atenção» ao irmão inclui, igualmente, a solicitude pelo seu bem espiritual. E aqui desejo recordar um aspecto da vida cristã que me parece esquecido: a correcção fraterna, tendo em vista a salvação eterna. De forma geral, hoje é-se muito sensível ao tema do cuidado e do amor que visa o bem físico e material dos outros, mas quase não se fala da responsabilidade espiritual pelos irmãos. Na Igreja dos primeiros tempos não era assim, como não o é nas comunidades verdadeiramente maduras na fé, nas quais se tem a peito não só a saúde corporal do irmão, mas também a da sua alma tendo em vista o seu destino derradeiro. Lemos na Sagrada Escritura: «Repreende o sábio e ele te amará. Dá conselhos ao sábio e ele tornar-se-á ainda mais sábio, ensina o justo e ele aumentará o seu saber» (Prov 9, 8-9). O próprio Cristo manda repreender o irmão que cometeu um pecado (cf. Mt 18, 15). O verbo usado para exprimir a correcção fraterna – elenchein – é o mesmo que indica a missão profética, própria dos cristãos, de denunciar uma geração que se faz condescendente com o mal (cf. Ef 5, 11). A tradição da Igreja enumera entre as obras espirituais de misericórdia a de «corrigir os que erram». É importante recuperar esta dimensão do amor cristão. Não devemos ficar calados diante do mal. Penso aqui na atitude daqueles cristãos que preferem, por respeito humano ou mera comodidade, adequar-se à mentalidade comum em vez de alertar os próprios irmãos contra modos de pensar e agir que contradizem a verdade e não seguem o caminho do bem. Entretanto a advertência cristã nunca há-de ser animada por espírito de condenação ou censura; é sempre movida pelo amor e a misericórdia e brota duma verdadeira solicitude pelo bem do irmão. Diz o apóstolo Paulo: «Se porventura um homem for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão, e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado» (Gl 6, 1). Neste nosso mundo impregnado de individualismo, é necessário redescobrir a importância da correcção fraterna, para caminharmos juntos para a santidade. É que «sete vezes cai o justo» (Prov 24, 16) – diz a Escritura –, e todos nós somos frágeis e imperfeitos (cf. 1 Jo 1, 8). Por isso, é um grande serviço ajudar, e deixar-se ajudar, a ler com verdade dentro de si mesmo, para melhorar a própria vida e seguir mais rectamente o caminho do Senhor. Há sempre necessidade de um olhar que ama e corrige, que conhece e reconhece, que discerne e perdoa (cf. Lc 22, 61), como fez, e faz, Deus com cada um de nós.
2. «Uns aos outros»: o dom da reciprocidade.
O facto de sermos o «guarda» dos outros contrasta com uma mentalidade que, reduzindo a vida unicamente à dimensão terrena, deixa de a considerar na sua perspectiva escatológica e aceita qualquer opção moral em nome da liberdade individual. Uma sociedade como a actual pode tornar-se surda quer aos sofrimentos físicos, quer às exigências espirituais e morais da vida. Não deve ser assim na comunidade cristã! O apóstolo Paulo convida a procurar o que «leva à paz e à edificação mútua» (Rm 14, 19), favorecendo o «próximo no bem, em ordem à construção da comunidade» (Rm 15, 2), sem buscar «o próprio interesse, mas o do maior número, a fim de que eles sejam salvos» (1 Cor 10, 33). Esta recíproca correcção e exortação, em espírito de humildade e de amor, deve fazer parte da vida da comunidade cristã.
Os discípulos do Senhor, unidos a Cristo através da Eucaristia, vivem numa comunhão que os liga uns aos outros como membros de um só corpo. Isto significa que o outro me pertence: a sua vida, a sua salvação têm a ver com a minha vida e a minha salvação. Tocamos aqui um elemento muito profundo da comunhão: a nossa existência está ligada com a dos outros, quer no bem quer no mal; tanto o pecado como as obras de amor possuem também uma dimensão social. Na Igreja, corpo místico de Cristo, verifica-se esta reciprocidade: a comunidade não cessa de fazer penitência e implorar perdão para os pecados dos seus filhos, mas alegra-se contínua e jubilosamente também com os testemunhos de virtude e de amor que nela se manifestam. Que «os membros tenham a mesma solicitude uns para com os outros» (1 Cor 12, 25) – afirma São Paulo –, porque somos um e o mesmo corpo. O amor pelos irmãos, do qual é expressão a esmola – típica prática quaresmal, juntamente com a oração e o jejum – radica-se nesta pertença comum. Também com a preocupação concreta pelos mais pobres, pode cada cristão expressar a sua participação no único corpo que é a Igreja. E é também atenção aos outros na reciprocidade saber reconhecer o bem que o Senhor faz neles e agradecer com eles pelos prodígios da graça que Deus, bom e omnipotente, continua a realizar nos seus filhos. Quando um cristão vislumbra no outro a acção do Espírito Santo, não pode deixar de se alegrar e dar glória ao Pai celeste (cf. Mt 5, 16).
3. «Para nos estimularmos ao amor e às boas obras»: caminhar juntos na santidade.
Esta afirmação da Carta aos Hebreus (10, 24) impele-nos a considerar a vocação universal à santidade como o caminho constante na vida espiritual, a aspirar aos carismas mais elevados e a um amor cada vez mais alto e fecundo (cf. 1 Cor 12, 31 – 13, 13). A atenção recíproca tem como finalidade estimular-se, mutuamente, a um amor efectivo sempre maior, «como a luz da aurora, que cresce até ao romper do dia» (Prov 4, 18), à espera de viver o dia sem ocaso em Deus. O tempo, que nos é concedido na nossa vida, é precioso para descobrir e realizar as boas obras, no amor de Deus. Assim a própria Igreja cresce e se desenvolve para chegar à plena maturidade de Cristo (cf. Ef 4, 13). É nesta perspectiva dinâmica de crescimento que se situa a nossa exortação a estimular-nos reciprocamente para chegar à plenitude do amor e das boas obras.
Infelizmente, está sempre presente a tentação da tibieza, de sufocar o Espírito, da recusa de «pôr a render os talentos» que nos foram dados para bem nosso e dos outros (cf. Mt 25, 24-28). Todos recebemos riquezas espirituais ou materiais úteis para a realização do plano divino, para o bem da Igreja e para a nossa salvação pessoal (cf. Lc 12, 21; 1 Tm 6, 18). Os mestres espirituais lembram que, na vida de fé, quem não avança, recua. Queridos irmãos e irmãs, acolhamos o convite, sempre actual, para tendermos à «medida alta da vida cristã» (João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte, 31). A Igreja, na sua sabedoria, ao reconhecer e proclamar a bem-aventurança e a santidade de alguns cristãos exemplares, tem como finalidade também suscitar o desejo de imitar as suas virtudes. São Paulo exorta: «Adiantai-vos uns aos outros na mútua estima» (Rm 12, 10).
Que todos, à vista de um mundo que exige dos cristãos um renovado testemunho de amor e fidelidade ao Senhor, sintam a urgência de esforçar-se por adiantar no amor, no serviço e nas obras boas (cf. Heb 6, 10). Este apelo ressoa particularmente forte neste tempo santo de preparação para a Páscoa. Com votos de uma Quaresma santa e fecunda, confio-vos à intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria e, de coração, concedo a todos a Bênção Apostólica.

Vaticano, 3 de Novembro de 2011

BENEDICTUS PP. XVI
 
© Copyright 2011 - Libreria Editrice Vaticana